O que é uma Psicologia que está a serviço da alma?
- Amanda Annibale
- 15 de jun.
- 8 min de leitura
Atualizado: 15 de jul.

“Cada pessoa entra neste mundo atendendo a um chamado — uma espécie de propósito interior que antecede a própria consciência do eu.”
— James Hillman, O Código da Alma
Em mim vive um incômodo constante sobre como a natureza psicológica é tratada nos nossos tempos. Uma abordagem que é médica, da própria psicologia e também cultural — onde o aparelho psicológico é como uma máquina que deve ser moldada, consertada ou adaptada aos interesses coletivos. E pasmem, eu como psicóloga e ser humano, também não acredito que essa abordagem unilateral da Psicologia, que valoriza somente a adaptação social do indivíduo, seja a resposta para as manifestações perturbadoras da nossa psique atualmente.
Estamos alienados do que nos é naturalmente humano. As demandas do mundo capitalista com o avanço da tecnologia trazem uma cultura da hiper valorização do imediatismo, da performance, da digitalização da vida, da virtualização das relações, da imagem, das aparências, da meritocracia e da autossuficiência como ideais. Vivemos inconscientes para as influências coletivas. Sustentamos uma psique em estado de alerta e com profunda desmotivação, cultivando apatia, sensação de vazio, alienação, falta de propósito, ansiedade, depressão, somatizações, crises existenciais, falsa identidade (despersonalização), repetição de padrões prejudiciais a si mesmo (ciclos de autocobrança, comparação e exaustão), dificuldade de desenvolver intimidade nas relações (superficialidade), resistência ao autoconhecimento e outros processos naturais que demandam tempo.
Entendo isso como uma carência cultural, que nos afeta individualmente e também é afetada pela nossa individualidade. Em contraponto a essas experiências, a psique não se cala, encontramos cada vez mais pessoas buscando por experiências de sentido e espiritualidade. Que hoje, sem o desenvolvimento de uma relação com as nossas motivações mais profundas, se torna mais uma forma de anestesiar-se de si mesmo. Hoje temos imersões, práticas orientais como Yoga e Meditação, que promovem um relacionamento anestésico por meio de contato exclusivo com os aspectos agradáveis da vida — ignorando a sabedoria das experiências individuais de sofrimento psíquicas. Busca-se leveza por anestesia e não por profundidade.
“A patologização generalizada do desenvolvimento psicológico normal é uma das grandes distorções da cultura de consumo. Tudo aquilo que frustra ou dói é rapidamente considerado anormal.”
— Joseph Campbell, O Voo do Pássaro Selvagem
É possível perceber essa influência estigmatizada, reducionista e racionalista na própria graduação de Psicologia. Afinal, hoje no mercado as práticas psicológicas mais valorizadas são as terapias breves, com a sua função no complexo psíquico coletivo, porém uma vez isoladas não atuam como processo de autoconhecimento, mas sim como paliativos. James Hillman, em sua obra O código da alma, traz a luz da Psicologia Arquetípica, como a singularidade humana é tratada como doença que precisa ser curada ou anestesiada, nos nossos tempos — fazendo uma crítica, inclusive a Psicologia, por contribuir a sua maneira com essa perspectiva contemporânea.
Na sede de ser reconhecida como ciência, algumas abordagens da Psicologia perderam o rumo do autoconhecimento. Hoje elas se desenvolveram restritamente para “resolver problemas” brevemente e a baixo custo. Atuando contra a natureza psicológica e individual de cada ser humano, exercendo o papel de mais um anestésico para incêndios emocionais e reforçador da cultura da superficialidade. Será que realmente saímos da atitude coletiva estigmatizada que foi responsável pela construção da cultura de internação compulsória manicomial? Ou migramos somente essa mesma atitude para o consultório e redes sociais, buscando vender técnicas vazias em prejuízo do autoconhecimento real?
No meu ponto de vista, uma Psicologia que não educa, e tampouco desenvolve autonomia para o indivíduo para lidar com seu aparelho psicológico no futuro, é responsável por “recaídas” psicológicas, que levam essas pessoas mais uma vez ao consultório para mais “soluções rápidas e eficazes”. E aqui pergunto, eficazes para quem? Esse sistema reforça a resistência social na Psicologia, que não está a serviço da alma, ou seja, do que é singular em cada um, mas sim do Espírito da época e as demandas de consumo capitalistas.
A minha primeira experiência direta com a Psicologia profunda de Carl Gustav Jung não aconteceu na faculdade, mas sim em uma leitura indicada por uma colega de turma. Isso foi há 12 anos. Hoje, após me desenvolver profissionalmente na área clínica, tenho maior convicção de que essa abordagem pode contribuir muito para as questões da nossa época.
A Psicologia Analítica aborda as motivações humanas em sua profundidade e, não se restringe a diagnósticos e soluções breves, é uma Psicologia que eu acredito. Entendo que essa imagem de reatividade, resistência e descrença popular de uma Psicologia exclusiva para “loucos” ou pessoas que sofrem de transtornos mentais, é uma busca inconsciente por validação da nossa verdade e profundidade. Uma imagem de uma Psicologia que trate nossa singularidade como doença, é rejeitada pela alma de qualquer ser humano.
“A alma fala em imagens. Por isso, quem não compreende a linguagem simbólica, não compreende a própria alma.”
— Carl Gustav Jung
A palavra “alma” no senso comum, costuma remeter a perspectiva religiosa, mas sob a ótica da Psicologia Analítica “Chamamos de ‘alma’ àquela realidade invisível que anima e move o ser humano.” — C.G. Jung, Aion — Estudos sobre o Simbolismo do Si-mesmo (1951), § 8. A Psicologia profunda entende que por trás de cada ação humana há uma motivação que é expressão viva de nosso aspecto mais singular, estejamos conscientes ou não disso. Consideramos aqui que não é necessário um transtorno mental para sofrermos influências inconscientes, isso faz parte da nossa natureza e desenvolvimento psíquico, é instintual — um processo que C.G. Jung chamou de individuação, uma busca natural do ser humano por tornar-se si mesmo.
Faz parte da natureza psicológica a manifestação do que a Psicologia Médica chama de Transtorno Mental. Eles são compreendidos pela Psicologia Analítica e pela Psicologia Arquetípica, como um chamado para adaptação a nossa vida interior, que ressoa por sua vez na nossa relação com o mundo. Desde pequenos somos educados a lidar com as questões sociais adaptativamente, desenvolvendo habilidades para viver e sobreviver conforme as condições dos nossos tempos. E uma das maiores influências de nossos tempos é o desenvolvimento unilateral do pensamento lógico racional, desvalorizando outras formas de pensar, como o pensamento simbólico, tão antigo e tão necessário atualmente.
Da psique simbólica à psique lógica racional: o desenvolvimento da humanidade

Nem tudo na vida é respondido pela lógica racional. E essa consciência é sentida, simplesmente sabemos. A linguagem simbólica há muitos milênios precede a linguagem racional. Quando a mente humana não consegue dar uma resposta lógica racional para alguma experiência, então temos uma demanda simbólica.
Desde o início dos tempos, o ser humano busca compreender o mundo ao seu redor e a dar sentido a própria existência. Antes de desenvolvermos a linguagem verbal estruturada, nossos ancestrais expressavam suas experiências internas por meio de imagens (a linguagem mais antiga do nosso cérebro), gestos, sons, mitos e rituais. Era assim que eles expressavam representações de experiências que iam além do visível. Quando algo precisa ser sentido, vivenciado e compartilhado — mas não o pode literal ou ser diretamente feito, eis que usamos a nossa habilidade simbólica. Aqui a imaginação e a fantasia não são desconsideradas, são representações das nossas emoções, pressentimentos, angústias e intuições profundas. Ela é a forma viva mais antiga da nossa mente se comunicar conosco.
A linguagem lógica racional e conceitual foi desenvolvida milênios depois da linguagem simbólica. Um marco para a evolução da nossa espécie, responsável pelo surgimento da ciência, filosofia, da linguagem técnica e da organização social. A razão nos permitiu desenvolver maior clareza, controle, previsibilidade e progresso material. Ainda assim, não foi o bastante para colocar em desuso a nossa dimensão simbólica. Ainda somos seres que necessitam do símbolo para dar vida àquilo que a razão não explica. O desenvolvimento da razão veio como elemento complementar, e não como uma substituição.
Porém, foi a partir do Iluminismo que culturalmente sofremos coletivamente do predomínio absoluto da razão. Os valores da alma foram eclipsados pela ciência, que não estava mais a serviço da natureza humana, mas sim tentando subjugar ela às condições coletivas da época. Promovendo um distanciamento do simbólico, do imaginário, do sensível e de uma relação mais próxima com o inconsciente.
A necessidade de resgate do pensamento simbólico

O predomínio da razão em detrimento da linguagem psíquica, nativa irracional, simbólica, é um das principais características do Espírito da época. Considero importante deixar claro que aqui não estou dizendo que a adaptação à coletividade é ruim, mas uma atitude psicológica unilateral nesse sentido sim — como o seria em qualquer outro sentido. Entendemos como unilateralidade, uma adaptação exclusiva às demandas sociais e culturais em prejuízo das demandas internas e subjetivas.
“A adaptação exclusiva ao espírito da época leva inevitavelmente ao estado de desorientação interior, ao vazio, à perda de sentido e ao enfraquecimento da personalidade.”
— Carl Gustav Jung, O Eu e o Inconsciente
Diante dessa questão tão urgente de nossos tempos, uma Psicologia a serviço da alma é uma Psicologia que resgatada essa relação humana com a nossa psique simbólica e com a vida. É para mim, uma abordagem que respeita a natureza humana em sua forma integral e resgata um relacionamento consciente com a nossa ancestralidade. É a proposta da Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung e da Psicologia Arquetípica de James Hillman. Para eles, a psique humana é um órgão vivo autorregulador, onde cada elemento psicológico possui uma função, ou finalidade, que nos convoca sempre a alinhar nossas atitudes para ser cada vez mais quem somos, um chamado da alma humana para dar expressão e viver a sua singularidade. Uma Psicologia que vai além do que nos aconteceu, que nos compreende como sujeitos a partir das nossas escolhas, do que escolhemos nos tornar e nossas motivações mais profundas.
“Quanto mais minha vida for explicada apenas pelos meus cromossomos, pelas ações ou omissões dos meus pais, e pelos anos distantes da infância, tanto mais minha biografia se torna a história de uma vítima.”
— James Hillman, O Código do Alma
Uma Psicologia a serviço da alma , está à serviço a singularidade que vive em cada um de nós, do que não encontramos fora no mundo da mesma forma, do que é expressão única e individual nossa. Aqui os transtornos mentais são entendidos como chamados internos de alinhamento e desenvolvimento humano. Os nossos sonhos, fantasias, mitos, contos e a arte, tem espaço para coexistir com a razão e complementar a nossa experiência, tão carente de sentido hoje em dia. A forma mais antiga de comunicação da nossa mente é reintegrada na nossa vida, nos devolvendo uma sabedoria que a razão não consegue apreender em sua totalidade. É uma Psicologia que não exclui a natureza psicológica em nome de uma ciência que está a serviço de um homem partido, de um homem puramente racional, que não existe!
O cultivo da alma é uma emergência medicinal para os males da nossa época. Talvez hoje estejamos distantes de compreender a sabedoria psicológica arquetípica das histórias antigas, dos contos e dos mitos. Talvez tenhamos nos tornamos capatazes da nossa própria alma, algozes da nossa própria redenção. Como então podemos acessar a nossa humanidade diante de tal perspectiva? A resposta está em nós, precisamos reaprender a ouvir o que ressoa em nosso íntimo, resgatar essa escuta simbólica.
Na natureza de cada ser humano existe essa terra onde as melhores sementes de nós mesmos estão a espera para o cultivo do que há de mais verdadeiro em nós. Podemos começar por lembrar da nossa infância, ouvir nossos desejos e fantasias, ouvir os nossos sonhos, nossas repetições e obsessões - nossa psique ancestral está a nos chamar através de imagens. O resgate do pensamento simbólico é urgente e inadiável.
Há mais coisas numa vida humana do que permitem nossas teorias a seu respeito. Mais cedo ou mais tarde, alguma coisa parece nos chamar para um caminho específico. Essa ”coisa” pode ser lembrada como um momento marcante na infância, quando uma urgência inexplicável, um fascínio, uma estranha reviravolta dos acontecimentos teve a força de uma anunciação: isso é o que devo fazer, isso é o que preciso ter. Isso é o que sou.
— James Hillman, O código da alma
Referências
HILLMAN, James. O Código da Alma: Em Busca do Caráter e da Vocação. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997.
CAMPBELL, Joseph. O Voo do Pássaro Selvagem: Explorando o Espaço Mítico. São Paulo: Cultrix, 2002.
JUNG, Carl Gustav. Aion: Estudos sobre o Simbolismo do Si-mesmo. Petrópolis: Vozes, 2011. (Obras Completas de C.G. Jung, Vol. 9/2).
JUNG, Carl Gustav. O Eu e o Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2012. (Obras Completas, Vol. 7/2).
HILLMAN, James.Re-Visioning Psychology. New York: Harper & Row, 1975.
JUNG, Carl Gustav.Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Petrópolis: Vozes, 2000. (Obras Completas, Vol. 9/1).
CAMPBELL, Joseph.O Poder do Mito. São Paulo: Palas Athena, 1990.
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